quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Máquina do Gênio

Allan Snyder, Centre for the Mind, AustraliaAllan Snyder, Centre for the Mind, Australia
Centre for the Mind




 Helen Phillips da "New Scientist"

Correr riscos é uma das coisas que mais me motivam", diz Allan Snyder. O espantoso é que tantas outras pessoas concordem de bom grado em vestir o "capacete" especial que ele criou, para que Snyder possa transmitir impulsos magnéticos fortes a seus cérebros, numa tentativa de transformá-los -temporariamente- em "gênios" autistas. O pesquisador, que é diretor do Centro da Mente, na Austrália, não explicaria o que faz exatamente com essas palavras . Ele diria que desliga as funções cerebrais superiores para tentar imitar determinados sintomas da doença mental. Mas é basicamente a mesma coisa. Snyder quer ver se é capaz de transformar uma pessoa comum em uma excepcional. E por que ele quer fazer isso? Bem, ele explica, se conseguisse criar condições perfeitas, seu "zapeador" mental magnético poderia funcionar como máquina de criatividade, trazendo à tona um gênio interior que suas cobaias nem sequer tinham consciência de possuir. Em vista da excentricidade evidente de Snyder e do fato de ele próprio admitir seu fascínio com o risco, seria natural que você preferisse fugir a deixá-lo mexer com sua mente. Mas Snyder é muito sério em suas intenções. Reserve um momento para analisar os muitos prêmios e bolsas que ele já recebeu, os centros de pesquisa que dirige na Universidade de Sydney e na Universidade Nacional Australiana, sem falar no fato de atrair pessoas como o Dalai Lama e Nelson Mandela a suas conferências -talvez você ache que vale a pena ouvi-lo. Depois que ele começa a falar, é difícil distinguir onde termina a excentricidade e onde começa o gênio criativo. E talvez seja exatamente isso o que é importante compreender. Não é de hoje que a insanidade é vinculada à criatividade. Van Gogh, Edgar Allan Poe, Tchaikovsky e John Nash, todos se equilibravam sobre uma linha delicada que separa as duas coisas. Mas não foi um gênio psicótico ou maníaco que levou Snyder a refletir. Foram os "gênios" ou "sábios" autistas -pessoas gravemente deficientes, mas que possuem uma ou duas habilidades mentais espantosas. Esses talentos chamam a atenção ainda mais porque freqüentemente se manifestam em pessoas cuja inteligência, com essa exceção, é limitada. Apesar do que se acredita popularmente, o autismo raramente é ligado a capacidades espantosas. Para cada "sábio" autista, existem possivelmente dez outras pessoas em quem o autismo não vem acompanhado de nenhuma habilidade especial. E aproximadamente metade de todos os "sábios" não são autistas, e sim apresentam alguma outra forma de deficiência mental. Entretanto, o simples fato de os "sábios" existirem deu a Snyder uma idéia brilhante. "Minha pesquisa é voltada para a idéia de que é possível ativar habilidades extraordinárias, desligando uma parte do cérebro", ele explica. Não é de hoje que os psicólogos se sentem fascinados diante das habilidades dos "sábios". A visão ortodoxa reza que essas "ilhas de gênio" resultam do uso obsessivo da pouca capacidade mental poupada pela doença. Mas Snyder discorda. Ele acha que todos nós temos habilidades espantosas, escondidas em nosso subconsciente. Para ele, o autismo causa a perda de parte de nossas funções cerebrais normais, e isso às vezes permite que as habilidades especiais se destaquem. A principal razão para pensar que existem habilidades especiais escondidas dentro de todos nós é que elas podem aparecer espontaneamente depois que uma pessoa sofre danos cerebrais. "Sábios" desse tipo também são encontrados entre pessoas que sofrem de uma condição neurodegenerativa rara conhecida como demência frontotemporal. Nessa doença, as pessoas -geralmente na casa dos 50 anos- vão pouco a pouco perdendo suas inibições e suas faculdades mentais, enquanto parte do cérebro situado debaixo de suas têmporas vai se desfazendo. O neurologista Bruce Miller, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, é especialista na doença e já documentou um punhado de pacientes que foram desenvolvendo habilidades artísticas à medida que a doença avançava. Um paciente que até então não tinha tido interesse por arte aos 53 anos começou a desenhar, recriando cenas vívidas da infância. A arte gerada por essas pessoas é distintamente "sábia", diz Snyder -ou seja, consiste em cenas ou memórias realistas, muito mais do que imagens criativas. Mas o que mais chamou a atenção de Snyder foi a descoberta de Miller de que todos os pacientes apresentavam danos na mesma área, o lobo frontotemporal direito. "As pessoas que possuem essas habilidades incomuns as possuem porque sofreram danos cerebrais", diz Snyder. "Nossa teoria é que os danos cerebrais as levaram a acessar algo que todos nós possuímos." Mas o que isso pode ser? Os psicólogos sabem há muito tempo que uma grande parte da atividade cerebral ocorre sem nosso conhecimento e que apenas uma parte pequena chega a atingir nossa consciência. A versão que Snyder apresenta desse modelo reza que nosso cérebro inconsciente extrai todos os detalhes sensoriais brutos referentes ao mundo que nos cerca -os tons, as linhas, a luz e as sombras. Essas informações excedem em muito a quantidade com a qual podemos lidar, diz. Nossa mente inconsciente pega o fluxo de informações, o simplifica e o classifica em categorias úteis e administráveis. Onde se vêem linhas e padrões de sombra e escuro, nossa mente consciente sabe que se trata de um cavalo. Sabemos isso porque nosso cérebro já aprendeu tudo sobre cavalos, já experimentou aquilo que faz um objeto ser um cavalo e não um cão ou uma mesa, e já formou um conceito e uma imagem mental. É uma maneira muito eficiente de nossas mentes trabalharem. Ela nos permite identificar coisas rapidamente, lhes atribuir nomes e comunicar as idéias ligadas a elas. A mente também aprende como essas coisas podem se comportar, de modo que possamos fazer previsões sobre o mundo e criar regras de comportamento apropriado. A essas várias maneiras de extrair significados das informações brutas, Snyder dá o nome de "mindsets", algo como enquadramentos mentais. Na visão de Snyder, o que falta aos "sábios" são esses enquadramentos mentais. Eles recebem apenas informações sensoriais brutas, e seus desenhos precisos constituem reflexos disso. A razão pela qual a maioria das pessoas não consegue desenhar assim é que os enquadramentos mentais as atrapalham. Uma vez que o cérebro formou um conceito, ele inibe a mente consciente, impedindo-a de tomar consciência dos detalhes que geraram o conceito em primeiro lugar. Snyder e seu colega John Mitchell foram a público com essa idéia há cinco anos, mas foram recebidos com ceticismo. Então começaram a tentar provar a tese. É aí que entra o "zapeador mental" magnético. Nem todo o mundo se deixará convencer pela idéia de Snyder sobre o que faz a mente ser criativa. Mas ela é ousada, original e, o que é mais importante, pode ser testada Soa drástico, mas o fato é que o uso de impulsos magnéticos para desligar a atividade cerebral é rotineira em hospitais e departamentos de neurologia. Chamada estimulação magnética transcraniana, ou TMS, ela é usada como ferramenta de pesquisa para verificar a presença de efeitos colaterais de cirurgias cerebrais e para detectar a função de partes do cérebro. A idéia é simples: basta colocar um campo magnético sobre o couro cabeludo e você vai interromper a atividade elétrica em uma parte de seu cérebro, do mesmo modo que colocar um ímã num computador pode travar o disco rígido. Snyder e seus colegas decidiram focalizar a TMS em cima da área de Miller -o lobo frontotemporal esquerdo-, na esperança de que danos temporários e reversíveis a essa área permitissem o surgimento de habilidades "geniais" especiais. No ano passado o teste foi feito, primeiro com o próprio Snyder, depois com 11 voluntários, em condições experimentais. No fim de 2003, Snyder publicou os resultados iniciais de seu estudo (no "Journal of Integrative Neuroscience", volume 2, pág. 149). Falemos primeiro do lado negativo. Apenas quatro dos 11 voluntários reagiram à TMS. Mas isso não é tão incomum assim, diz Niels Birbaumer, do Instituto de Psicologia Médica e Neurobiologia Comportamental da Universidade de Tübingen, na Alemanha. "Em algumas pessoas acontece o efeito, e em outras, não", diz ele. Alterações de estilo Entretanto, diz Snyder, nas quatro pessoas que reagiram, a TMS exerceu efeitos notáveis. Primeiro ele analisou o estilo em que as pessoas desenhavam antes, durante e depois dos 15 minutos de TMS. Pediu aos sujeitos que desenhassem pessoas de memória, depois de terem visto fotos delas por pouco tempo, e animais, a partir de sua imaginação. Não se pode muito bem dizer que a TMS tenha levado os sujeitos a desenhar melhor, mas parece tê-los levado a mudar seu estilo. Pode-se dizer que os desenhos se tornaram mais naturais. Os efeitos duraram cerca de 45 minutos, o que leva a crer ou que a TMS tivesse efeitos que se prolongaram, ou que os sujeitos aprenderam uma nova maneira de fazer coisas. Três das quatro pessoas que reagiram também relataram estados de consciência alterados, dizendo que perceberam mais os detalhes. Snyder também queria um teste mais objetivo, então pediu a seus sujeitos que fizessem a revisão de sentenças contendo, cada uma, um erro não evidente. Sem a TMS nenhum deles identificou os erros, mas com a TMS dois sujeitos tiveram probabilidade maior de detectá-los. Um deles viu seu índice de acerto passar de zero a 70%, outro de zero a 50%. Snyder diz que isso é prova de que a TMS faz os sujeitos verem o mundo como ele é. "Como os "gênios" autistas, eles ficam muito mais literais." Snyder também está desenvolvendo um conjunto de exames para testar habilidades matemáticas, analisando a geração de números primos e as habilidades de cálculo de calendário, além de habilidades musicais. Outros cientistas já tiveram resultados que respaldam as idéias de Snyder. A psicóloga Robyn Young e seus colegas na Universidade Flinders, em Adelaide, Austrália do Sul, num primeiro momento eram céticos em relação à teoria de Snyder, mas analisaram uma gama maior de habilidades sob o efeito da TMS. Ela pediu a voluntários que recordassem listas de nomes, endereços e telefones, que reproduzissem imagens que lhes tinham sido mostradas por pouco tempo, avaliassem tons musicais como sendo mais altos, mais baixos ou iguais ao tom padrão usado no exame e que identificassem os números primos no meio de uma longa lista de números. Cinco de 17 voluntários tiveram melhoras. Se Snyder e sua equipe tiverem razão, e todos nós possuirmos habilidades "geniais" ocultas, ele sugere implicações interessantes. Ele prevê que a TMS possa nos proporcionar, ao menos temporariamente, acesso a habilidades "geniais", como afinação musical perfeita, memória melhor ou facilidade para aprender uma língua sem sotaque. Mas a idéia favorita de Snyder é que ele possa usar a máquina de TMS como "chapéu pensante", para aumentar a criatividade. É uma afirmação e tanto. Os psicólogos não conseguem chegar a um consenso sobre o que é a criatividade nem de onde ela vem, mas uma coisa sobre a qual todos concordariam é que as habilidades "geniais" são tudo, menos criativas. Elas podem parecer criativas, mas na realidade não passam de uma cópia elaborada, diz John Geake, que estuda criatividade na Universidade Oxford Brooks, no Reino Unido. Um pianista "gênio" pode reproduzir uma peça inteira que ouviu apenas uma vez antes, mas seria incapaz de compor ou improvisar. Snyder não discorda dessa visão. "Está claro que as habilidades "geniais" são pura imitação", diz ele, "quase o oposto da criação." Mas ele afirma que existe uma ligação entre a "genialidade" e a criatividade. Ser criativo, ele explica, diz respeito a interligar idéias aparentemente díspares de maneira nova. É possível, então, que olhar rapidamente para o mundo da maneira como o "gênio" o vê, destituído de enquadramentos mentais, ajude a formar tais vínculos. É uma idéia que Snyder e sua equipe acabam de propor ao mundo da ciência neurológica (""Journal of Integrative Neuroscience", volume 3, pág. 19). E, o que não surpreende, as primeiras reações têm sido céticas. Embora, de modo geral, concorde com Snyder que nosso cérebro subconsciente tem muito em comum com os "gênios" autistas, Birbaumer não aceita a teoria de Snyder relativa à criatividade. "É especulativa e improvável", diz ele. Entre demonstrar vislumbres de habilidades semelhantes às dos "gênios" em todos nós e situar essas habilidades no cerne de uma teoria da criatividade, a distância é grande. Há muitas teorias sobre o que faz o cérebro ser criativo, mas nenhuma delas, até hoje, foi comprovada. Nem todo o mundo se deixará convencer pela idéia de Snyder sobre o que faz a mente ser criativa. Mas ela é ousada, original e, o que é mais importante, pode ser testada. Ela pode ser maluca. Por outro lado, também é possível que seja um lampejo espantosamente criativo. Tradução de Clara Allain (Folha de S. Paulo 16/05/2004).
in  aromasdeportugal

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